O último dia na Provence

Quero viver um amor não-perecível, que mereça ser armazenado em local seco e arejado. Me alimentar dum sentimento tão duradouro que a contagem dos dias perca todo o sentido e a gente fique velhinho sentado na varanda jogando milho pros pombos, só pra ver a criançada correndo jogando bola fazendo os bichinhos voarem.

Estou deitado na rede com uns rabiscos feitos em grafite e papel sulfite. As mãos já trêmulas da idade e abstinência do álcool ainda são firmes o suficiente pra te desenhar, enquanto você prepara um chá pra nós dois. Noite passada fiz uma massa integral muito especial e você me retribuiu hoje cedo com um bolo. Já sinto o cheiro da infusão passeando pela casa – é sério que você fez maçã com canela? Depois de tantos anos juntos, você até aprendeu a gostar de café e essas coisas de outono.

Provence.

Lá no portão tem um rapazinho chegando com a entrega de leite e queijo. Há alguns anos ele não traz mais vinho, mas em compensação tem sempre uma novidade degustativa pro nosso café-da-manhã ou pro chá da tarde. O desenho tá quase pronto. Apesar da memória falha, te rabisco como há tantos anos atrás, com o mesmo traço jovem de quando estávamos na escola. Você sorri enquanto admira seu próprio sorriso desenhado no papel.

Nos fundos da propriedade está a árvore que plantamos juntos, assim que chegamos aqui na França. Na sombra dela criamos nossos filhos, lendo Exupery e outros clássicos. Depois de velhos, eu mesmo li pra eles as obras que publiquei. Lembra dos saraus que a gente fazia com a meninada da vila? Nunca faltavam torradas e uma boa manteiga. Vivi uma vida boa quando finalmente vivemos uma vida boa juntos.

Amor, pega ali o açúcar enquanto levanto da rede, por favor?

A contragosto você parte rumo à cozinha. Nunca gostou de me dar açúcar, mas a essa altura, já grisalho e com tantas metas batidas, só quero sentir o sabor do teu chazinho de maçã com canela. Eu respiro fundo pra me levantar mas de repente tudo escurece. Tá difícil respirar. Não consigo te chamar, amor me ajuda!

Dou meu último sorriso sabendo que vai ficar bem sem mim.